Tivera eu alguns princípios, os quais, irremediavelmente não pude ignorar. Como uma pessoa de fases, e de muitos erros, óbvio. Mas não havia sequer alguma porção de ironia em meus atos. Kate é que nunca aceitou os meus limites. Para ela, tudo que dissesse respeito a mim, nada poderia ser delimitado. Eu sabia, compreendia rigorosamente todo e qualquer tipo de imposição de sua parte. Mas sentia como se houvesse sempre algo flutuando no ar, uma dúvida. O que quero dizer, é que nada ficava, por vez, literalmente esclarecido. Era de sua natureza complicar o que já não era mais possível de ser complicado.
Aprendi na marra que nem tudo era passível de se fazer sentido em minha vida. Havia sempre algo que ficava incompleto. E na ausência deste complemento, surgia a ligação que trazia a mim, o sentido de minhas descobertas e virtudes. Kate também não entendia. E por um átimo, descobri o óbvio.
No dia de minha partida, a nitidez de meus pensamentos foi se aflorando. Era curioso o fato de eu só ter conseguido enxergar naquele dia, o que passei décadas buscando entender. Claro ainda não estava. Mas começava a ligar todos os fundamentos como que, absorta a um turbilhão de lembranças e circunstâncias já vividas até aquele momento.
À medida que as minúsculas peças de um gigante quebra-cabeça faziam-se completar em minha cabeça, um sentimento de pura repugnância foi se apossando de mim. Eu sentia nojo e ao mesmo tempo medo de tudo que Kate já havia me feito. Sentia nojo de toda a sua desfaçatez, de sua ousadia absurda. E sentia medo. Medo de me afastar definitivamente de algo que aprendi a conviver, e daí então, não ter mais com o que me acostumar.
Tive medo de estar dando vazão a uma grande precipitação de meus pensamentos, no entanto, parei para fitá-la.
- O que? – lhe perguntei, a voz baixa. Absorta. Apenas para ter certeza de que ela não havia me pronunciado alguma palavra enquanto refletia e refletia. Não. Foi apenas impressão. Ela tornou a mirar o lado que nos opunha naquela sala de espera.
Fitei cada pequeno pedaço daquela extensão onde nos encontrávamos e busquei, sutilmente, prestar atenção em cada pequeno detalhe nas feições que se diferiam de pessoa para pessoa. O fato de as pessoas presentes naquele ambiente, terem, mesmo que na mais relevante profundeza de seu ser, algo ou alguma coisa conspirando a seu favor fazia com que a ideia de causa-e-efeito estivesse sendo comprovada com vigor. Era incrível como todos os gestos estabeleciam um diálogo corporal entre elas. Como cada olhar direcionado a certo lugar ou a lugar nenhum conseguia, de certa forma, transmitir um real sentimento da pessoa ao qual pertencia. Todas elas, sem exceção, estavam usufruindo daquilo que haviam almejado até aquele momento, eu sabia.
Mas ora, porque diabos o meu momento ainda não havia chegado? Percebi longinquamente o meu corpo reagir a uma pequena exaltação de meu coração. Kate me fitou desentendida, e manteve o silêncio, dissimulada.
Uma sentença com todas as respostas pelas quais eu vivia procurando formara-se tão rapidamente em minha mente que, mal tive tempo para discernir entre as que eu gostaria de acreditar, e as que eu precisava aceitar, embora realmente não quisesse.
Um pensamento longínquo aproximou-se e me fez ver o quão grandioso poderia ser o meu poder controlador sob algo que queria muito. Bastava, é claro, saber controlar. O que, só para variar, eu não sabia. E o meu destino de ali em diante, dependia somente de minha decisão. A primeira decisão que tomaria com relação à Kate. Mas por outro lado, parte de mim implorava para que eu deixasse tudo de lado e seguisse em frente com a única e verdadeira certeza de minha vida. Sim, eu gostaria muito. Mas as contradições faziam-se duplicar quando eu me punha a pensar numa maneira de reverter toda aquela história.
Tudo estava girando basicamente em torno de um relacionamento problemático. Costumava dizer prematuro – o que de fato, deixou de ser quando percebi o quanto perfeitamente bem Kate sabia atuar. Estava sendo medida a proporção de todas as decepções e mágoas que ainda existiam em mim, com a dimensão do sentimento que, teimosamente eu ainda sentia por ela. Qualquer pessoa em meu lugar, esqueceria esse meu tão pequeno sentimento quando fosse comparado com a série de conflitos e desentendimentos que já tive, em minha relação com Kate. Mas... Mas!
Eu poderia, sim, lutar para conseguir esquecer tais situações. Mas sabia que isso não dependeria apenas de minha vontade. E sabia também que, da parte de Kate, isso jamais aconteceria, embora ela negasse até as últimas circunstâncias.
De certa forma, eu estava sendo seduzida por aquela situação. E ia para esta loucura promissora. Mas o meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade. Meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser uma pessoa de nível incrivelmente inferior ao que já era. E essa verdade era, sem dúvidas, o fato de que Kate nunca sentiu mais do que uma simples consideração por mim. Ela não me amava.
E eu, que aos poucos ia me reduzindo ao que em mim era irredutível: lealdade a mim mesma. Depois de pensar que já resolvera tudo, percebi que absolutamente nada do que tivera para de fazer fora feito. Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido. Como ter um compromisso, e embora o estivesse cumprindo, você sentisse que ele permanecia intacto, pronto para ser completo de novo. Sem fim... Sem fim. Era esse o meu maior problema. Por mais que eu corresse milhas e milhas para longe de uma situação, seria como se eu parasse e constatasse que estive correndo em círculos todo o tempo.
Pensei em deixá-la a par de todos os meus pensamentos, desconfianças e dúvidas. E assim, quem sabe, esclarecer tudo de uma vez. Mas o que poderia ela fazer? Não me amava, eu já sabia. E não poderia simplesmente solicitar seu amor. Isso não.
Fitei o relógio que se localizava no grande outdoor à nossa frente e constatei que, embora pudesse pensar no que quisesse e o quanto quisesse, eu não teria mais a oportunidade de fazê-lo e em seguida discutir as ultimas conclusões com Kate se não naquele momento. Meu tempo estava encurtando... E comecei a sentir sua passagem de maneira cada vez mais intensa e explosiva.
De súbito, senti meu ombro ser suavemente pressionado. O coração bateu acelerado. Seria ela, aproveitando o último momento para pedir mais uma chance?
- Está na hora... – Ela reforçou a informação que a comissária de bordo já nos havia dado.
A fitei, pela primeira vez, na espera que algo estivesse incompleto. Ela precisava me dizer mais alguma coisa... O tempo não se findara.
- Me desculpe por não ter te amado como você me amou. Por não ter retribuído tudo o que fez por mim. Me desculpe por não ter sido a pessoa que você merece. – Ela me levou de encontro a si e ali mesmo me prendeu.
- Grite. – Ordenei-me quieta. – Grite. – Repeti-me inutilmente com um suspiro de profunda quietude.
Eu não podia. E todas aquelas mentiras que me dissera? Todas aquelas agressões verbais que me fizera? Todos os maus tratos e falta de sensibilidade? Todos os erros? E o amor que não existia? E meus princípios? Por Deus! Como ficariam? E mesmo assim, se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Poderia perder toda a dignidade que ainda me restava. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim. Ela estava, finalmente, me deixando.
Talvez, se eu tivesse revelado toda a minha carência, qualquer manifestação contrária faria sentido, mas ela não mereceria nem sequer isso.
Apanhei minhas malas em um canto debaixo do banco em que estávamos e insinuei seguir em frente. Insinuei e segui.
Ah, se ela soubesse da solidão desses meus primeiros passos! Não se parecia com a solidão de uma pessoa. Era como se eu já tivesse morrido e desse sozinha os primeiros passos em outra vida. E era como se a essa solidão chamassem de gloria, e também eu sabia que era uma gloria, e tremia toda nessa gloria divina primária, que, não só eu não compreendia, como profundamente não a queria.
Eu lutava como podia contra as areias movediças que me sorviam: e cada movimento que eu fazia para “não, não!”, cada movimento mais me empurrava sem remédio; não ter forças para lutar era o meu único perdão.
Fitei o avião que ainda me aguardava no exterior do ambiente e, insistentemente me aprisionava e buscava uma saída. Desesperadamente procurava escapar, e dentro de mim eu já recuara tanto que minha alma se encontrava lado a lado com a alma de Kate. E sem querer poder me impedir, sem querer mais me impedir, fascinada pela certeza do ímã que me atraía, eu recuava dentro de mim até onde ela estava. Eu a amava. Um louco amor, eu a amava! Bastava. Isso não mais!
Minha tensão de súbito quebrou-se como um ruído que se interrompia quando ela me sorriu por trás daquele vidro que nos separava. E o primeiro verdadeiro silêncio começou a soprar quando atravessei aquela passarela e, em alguns relances, pude ver que antes mesmo que eu tivesse notado, ela já havia ido embora.
Eu sabia que aquilo estava pela primeira vez fora de mim e ao meu inteiro alcance, incompreensível, mas ao meu alcance. E até o momento em que adentrei o avião, não havia percebido totalmente a minha luta, pois tão mergulhada estive nela. E depois, pelo silêncio onde eu finalmente caíra, sabia que havia lutado e que não fiz mais ou menos, fiz o que deveria ser feito. E que, agora sim, estava pronta. Para guardar apenas o que foi bom. Pronta para nascer de novo.

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