Me despedi de Sebastian, apanhei alguns pertences e adentrei o terceiro vagão. Não demorei mais do que cinco minutos para encontrar a cabine com o número que coincidia ao que estava em meu passaporte. Podia perceber outras mulheres em constante movimentação, ora pedindo informações, ora procurando seus lugares.
Não havia cabimento em toda aquela desordem que se formara ali dentro. Procurar um lugar não era, na maioria das vezes, motivo para tamanha manifestação.
Adentrei o local, logo organizei meus pertences nas duas pequenas prateleiras que haviam no alto da janela de vidro. Empurrei com leveza a porta deslizante, que logo se fechou, amenizando o barulho do lado de fora.
Poucos minutos após, o trem deu a partida. Do Oeste da Europa, eu estava, dali em diante, seguindo para Montpellier.
Havia um bom tempo que eu não sabia o que era ficar sozinha. Embora estivesse rodeada de outras mulheres por todos os cantos, eu estava gostando de me sentir isolada, em paz. Logo o silêncio que predominara estava prestes a me deixar surda. Foram poucas as vezes que tive a oportunidade de viver num ambiente que me fosse tão agradável. Cresci sujeita à poluição sonora do Centro, região oeste da França. Também nunca deixei que as pessoas tivessem a ilusão de achar que este fosse um lugar extremamente calmo. Negativo. Suas características eram totalmente atípicas ao nome que tinha.
Àquela altura já estávamos nos aproximando da região norte. E eu completamente absorta às minhas imaginações. Viajava, não apenas sob aqueles trilhos, mas em pensamentos.
Pensei em algum motivo que fizesse alguém reservar uma viagem como aquela para mim. Um vôo até outra cidade facilitaria tudo. Não por nada, simplesmente pela praticidade. O fato de eu estar num trêm exclusivo para mulheres não me incomodava nem um pouco, aliás, sempre tive um bom relacionamento com todas as que já fizeram parte de minha vida, exceto com minha mãe, é claro. Me sentiria um tanto que desconfortável se estivesse no meio de homens. Mesmo não mantendo qualquer tipo de contato com nenhum deles, só de imaginar, já me sentia mal. Tudo isso devido às lembranças ruins que me atordoavam.

Pelo vidro transparente da janela, eu estava a observar crianças e adolescentes brincando no alto das colinas. Incrível... de minha infância, não me recordo de ter feito qualquer brincadeira sadia, que normalmente todas as crianças faziam. Nem sequer ter praticado qualquer esporte contemporâneo da época. Meus pais sempre foram muito antiquados, e costumavam me transmitir os valores que eles não tiveram. Quando entrei para a escola, já com dez anos de idade, minha mãe fez questão de afastar de mim as únicas crianças com as quais eu tinha contato. Viviam me tratando como um ser de outro mundo. Era como se eu saísse nas ruas e estivesse sujeita a contrair vírus - as pessoas eram os vírus.
Eu não entendia o porque abominavam um relacionamento mais íntimo entre as pessoas nas ruas e viviam me privando de fazer o que eu sentia vontade. Seria algum medo das más influências que poderia ter? Não. Não podia ser. Desde quando proibir é evitar que algo aconteça? Ridículo.
Se dependesse de meus pais, eu seria, eternamente uma pirralha mimada, educada basicamente por profissionais particulares em minha própria casa. Sem cultura, sem conhecimento, sem amigos, sem infância ou adolescência. Sentia vergonha ao me comunicar com pessoas de minha idade. Não costumava estar por dentro dos assuntos. As novidades rodavam por todo o mundo, mas nunca chegavam em mim. Meu vocabulário era culto e desigual.
Tamanho foi o meu constrangimento quando comecei a estudar em casa. Fiquei sem sair na porta até me adaptar à vida doentil que eu passei a ter.
Devido ao meu esforço e dedição, adquiri o conhecimento que levava comigo aonde quer que eu fosse, ninguém nunca se ofereceu a fazer qualquer coisa por mim. Quando completei a maioridade, passei a tentar ser uma pessoa mais independente. Ainda tinha horários para chegar em casa, caso contrário dormiria na rua.
Não podia chegar deixando transparecer a quantidade absúrda de álcool que ingeria pelas noites, ou ficaria castigada durante uma ou duas semanas. Ainda levava ordens, mas não as seguia. Caso descobrissem, perderia todas as coisas que eu tinha. Coisas, que antes eu zelava muito, mas que já não faziam mais diferença para mim naquele momento.
O garçom servente apareceu, me tirando da reflexão mais intensa que já havia feito.
- Senhorita, o almoço já está sendo servido. Por gentileza, dirija-se até o quarto vagão.
Balencei a cabeça positivamente, levantando, e segui para o lugar informado. Haviam algumas mulheres conversando na porta que separava os vagões. Não me intimidei com os sorrisos amarelos que continham em suas faces e comportamentos insidiosos que partiam das mesmas. Adentrei o quarto vagão, deparando com pequenos grupos de algumas moças sentadas às mesas, com postura pouco mais fina que as demais.
À minha esquerda, havia uma única moça, em uma pequena mesa isolada. Ela me acompanhava com o olhar, enquanto eu seguia até o balcão. Apanhei alguns aperitivos e logo me sentei num lugar próximo ao restante das mulheres. Fitei os dois lados e meu olhar parou, quase que simultaneamente naquela mesma pessoa. Ela me fitou e sorriu. Eu me virei e também não pude evitar o sorriso bobo que se formou em minha face. Quando baixei o olhar novamente para fitá-la, notei que ela já seguia para outro lugar.
Deixei de lado o que eu estava fazendo e a segui. No mesmo instante em que ultrapassei a porta do terceiro vagão, um sinal alto tocou, e logo a moça desapareceu entre as outras mulheres.
Visto que ainda teria mais quatro longos dias de viagem, voltei para a cabine e permaneci, no intuito de dormir e descansar. No entanto, não consegui parar de pensar na misteriosa do quarto vagão. Havia algo nela que me chamou muito a atenção. Eu não sabia o que era, mas estava prestes a descobrir.
Subitamente abri a porta de minha cabine, e sem exceder qualquer movimento mais brusco, saí, em direção ao segundo vagão.
- Você sabe que não pode ficar perambulando pelos vagões a essa hora, não é? - uma senhora com a feição senil me barrou em minha tentativa de atravessar para o outro lado.
- Sim, eu sei. - me calei e continuei seguindo.
- Então por que continua a desobedecer as regras? - ela continuou. Seu jeito exasperador estava começando a me aborrecer. Por um triz não voltei e disse umas poucas e boas para ela.
Decidi continuar no que eu estava fazendo, e vendo que eu não voltaria, a outra desistiu. Pude ouvir a batida de sua porta e seguidamente sua cabine escurecer.
Levei minha mão até a trava e deslizei a porta de vagar, a fim de não chamar a atenção de ninguém. Todo o corredor estava escuro, mas no seu final havia uma única cabine acesa. Caminhei até o seu fundo, procurando em cada lugar escuro, encontrar a misteriosa que havia visto mais cedo. Ora diminuindo minhas passadas, ora aumentando a velocidade. Alcancei a última cabine e lá estava a moça. Com os olhos cerrados e as mãos juntas sob um livro de capa negra, ela parecia descansar. Visto que a porta estava destrancada, a deslizei com pouco mais de cautela e adentrei a cabine. Me dirigi até o pequeno abajur que estava ao seu lado, mas minha incumbência fora pouca, e quando me inclinei para desligá-lo, ela me fitou, deveras assustada.
- O que está fazendo aqui? - ela me indagou.
- Sua luz está acesa, e como não é permitido à essa hora, entrei para apagá-la. – menti. Sequer conhecia as regras para fazer tal afirmação. Me posicionei próxima a porta.
Ela se levantou, indo a um pequeno criado-mudo ao lado e guardou o livro que continha em suas mãos em uma das gavetas.
- A luz - Ela me fitou e se aproximou, sorrindo sarcasticamente. - Sei... - Parou em minha frente, me cercando com os braços.
Dois pequenos passos para trás e eu me senti encostar na porta. Não sabia o que aquilo significava, tampouco o que aquele sorriso sarcástico queria me dizer.
- Ainda bem que sabe... - A fitei, ruborizada.
Ela me olhou sorridente, parecia estar achando graça de minha feição pueril.
- Desirée Carlie. – ela se apresentou.
- Marcelle Claire Chevalier, muito prazer. – gaguejei.
- Bem... Se não se importa, agora eu preciso dormir. - Me deixou, finalmente, livre para me mover para o lado de fora da cabine.
Fiz que sim com cabeça, em momento algum desviando de seu olhar.
- Ah! - A impedi de fechar a porta. - Me desculpe, não quis assustá-la.
Ela me sorriu por trás daquela porta transparente. Me virei e segui até o final do corredor e atravessei o terceiro vagão. Adentrei a cabine e me acomodei.
O que me aconteceu? – pensei. Desconheci minhas reações anteriores.
Demorei alguns minutos até conseguir dormir, o que me provocou náuseas. Quase não percebi as horas passarem, e quando me dei conta, já estavam me informando o horário que serviriam o café da manhã.
O sinal que tocava todos os dias indicando os diferentes horários que tinhamos para fazer nossas tarefas, era irritantemente ensurdecedor. Especialmente no período da manhã.
Segui para o quarto vagão e me servi com apenas um copo de suco. Não sentia fome. Me sentei. Procurei em cada face feminina aquele olhar perspicaz e misterioso, mas não encontrei. Ela não estava lá. Logo o sinal tocou novamente e então voltamos para as cabines.
Minutos após, pude perceber a velocidade do trêm ser diminuida, e seguidamente darem início a um alvoroço. Coloquei parte do meu corpo para fora da cabine e constatei, portanto, que havia algo de errado no segundo vagão. Ao abrirem a porta, uma grande nuvem de fumaça se dissipou por todo lugar. Saí em disparada, e percebi que ao decorrer haviam chamas flamejantes por toda a parte.
O desespero estarrecedor das mulheres que corriam de um lado para o outro, tentando salvar parte de seus pertences, acabaram por me deixar aterrorizada.
A fumaça me tirava qualquer visão mais precisa do ocorrido. Senti um choque percorrer por meu corpo, quando a imagem da misteriosa se apossou de minha mente. Lembrei de tê-la visto somente na noite anterior. Estranho, tudo estava muito estranho.
Corri, mesmo com dificuldades para me locomover entre as outras mulheres e alcancei a última cabine. Ela não estava lá. Onde poderia estar? Eu não sabia.
- Ali! Tem alguém ali! – uma mulher afirmava com ênfase, enquanto apontava para o lado esquerdo do vagão, o qual estava completamente coberto pelas chamas que se faziam aumentar.
Eu sabia que teria de fazer alguma coisa. Ninguém ali estava tão preocupada quanto eu.
- Se afastem, por favor. Se afastem. – eu pedi. Logo abriram passagem, e num impulso pulei para o outro lado. Entre uma cabine e outra, lá estava Desirée atirada no chão.
Com a feição ruborizada, a pele manchada pelo ardor que a rodeava, ela me pedia para tirá-la dali.
Senti minha nuca ser pressionada, seus braços estavam em volta de meu pescoço. Fechei minhas mãos em volta de seu corpo e a trouxe para o alto. Ela deitou em meu ombro, desacordada.
- Vamos nessa. – tomei distancia das chamas para dentro de uma cabine, e sobressaltei para o outro lado. Rumei para longe dali, me livrando daquele calor infernal.
O trem parou, num lugar descampado, no meio do nada. Logo um senhor de pele branca e vestes modernas adentrou o vagão. Seu aspecto era culto e alegre.
- Senhoritas. - ele pediu a atenção das moças que conversavam distraídas. - Sou o Sr. Richard Sheerrévon, o maquinista de vocês. Tive algumas dificuldades para parar o trêm, pois estávamos numa velocidade nada razoável. – ele sorriu, animado. Não poderia estar à par de tudo que estava acontecendo no vagão. Sua entonação soava ironicamente aos meus ouvidos. - Espero que esteja tudo bem com as senhoritas.
- Não, não está. - logo eu disse. Percebendo o meu descontentamento e inquietude, o tão simpático cavalheiro me fitou ruborizado. - Essa moça... Ela foi atingida pelas chamas do segundo vagão. – a pessoa que ainda estava em meus braços me fitou, desentendida. Parecia ainda estar fora de si.
- O estado dela é grave? - ele se aproximou. - Só teremos uma parada daqui a dois dias completos, senhorita.
- Eu não sei. Ela não pronunciou sequer uma palavra depois que a tirei de lá.
- A senhorita se arriscou no meio daquele fogo para salvá-la? - o rapaz me fitou, incrédulo.
O que ele estava pensando? Seria mais um que se deixou levar pela minha aparência sagaz? - pensei.
- Bem, trago comigo alguns materiais de pronto socorro, talvez isso possa ajudá-la. - ele olhou ao redor - Alguém mais está ferida? Ótimo. - o moço se posicionou à porta. - Irei me contactar com meus superiores e voltarei em alguns instantes lhes trazendo notícias.
Como dito, ele não demorou. Voltou, trazendo consigo alguns materiais para uso médico. Por sorte havia uma jovem enfermeira especializada na área, que logo se ofereceu para ajudar.
- Senhoritas, tenho notícias. - O maquinista nos fitou, após atender a um chamado em seu rádio condutor. – O segundo vagão será retirado, e, por isso, algumas das senhoritas que pertenciam a ele, serão transferidas para algumas destas cabines.
Pude perceber um leve sorriso se formar nas faces da moça que, por um motivo já conhecido, ainda se encontrava em meus braços. Eu não sabia o que pensar, tampouco como reagir àquela notícia. Os acontecimentos anteriores ainda me atordoavam.