Bati a porta do carro e dei a
partida, rompendo as curvas sinuosas daquela estrada escura... sombria de tão
deserta que estava. Mas nada que me fizesse recuar. Tamanho era o meu
sentimento de repulsa!
Ao passo que reduzi minha
velocidade, desdobrei um mapa antigo sob o banco do passageiro. Visto que ainda
tinha pouco mais de 2km para percorrer até alcançar o meu destino, arranquei
como habitualmente fazia, deixando para trás a divisa com a fronteira.
Estava próximo. Havia acabado de
adentrar uma cidadezinha mórbida na costa leste do Tenessee, onde
lamentavelmente tive de estender minhas raízes quando jovenzinha. Até que perdi
meus avós, vindo a conviver com minha mãe e o inconsequente do meu padrasto,
aquele por quem procurei desde quando minha integridade fora arrancada de mim.
Devo-lhes dizer que havia tempos
que ansiava por apanhá-lo e com minhas próprias mãos fazer daquele patife
miserável em pedaços. Tudo o que eu queria – se fosse possível – era dilacerar-lhe
o coração. Faltava pouco, e eu de algum modo sabia que não tardaria a encontrá-lo.
Estacionei o carro, saltando em
baixo de um velho posto de gasolina abandonado e decidi concluir o meu percurso
a pé. Ao longe podia ver pouco mais do que dez casas situadas num lugar
descampado e sem qualquer fonte de energia elétrica. Deduzi que não diferente
de vinte anos atrás, os lampiões caseiros eram ainda a salvação para os
moradores daquele pedaço.
Em passos lentos e tranquilos
segui na direção do morro, cuja extensão era separada das ruas com uma enorme e
enferrujada cancela. Assim que aproximei-me da parte mais alta do morro, fui
bruscamente atingida pelas rajadas insistentes de vento. Permiti-me lembrar de
alguns dos momentos da dolorosa infância que tive. Imediatamente fui invadida
pelas piores sensações já experimentadas por mim até aquele momento. Aqueles
becos apertadinhos, aquelas árvores; os portões de madeira... tudo trazia à
tona as minhas mais temidas lembranças. Sequer lembro-me d’alguma vez que sorri
sem que por dentro eu estivesse apavorada... destroçada em matéria dos abusos
que sofria constantemente pelo companheiro de minha mãe todas as vezes que nos
encontrávamos a sós.
Estava em um de meus momentos
coléricos e estes costumavam ir muito além da consternação. Para transmitir com
exatidão era difícil, uma vez que até os meus suspiros eram carregados pelo
ódio exorbitado que sentia – e este beirava a ira.
Alcancei a ultima casa rodeada
por uma cerca incompleta de arame farpado. Rompi o portão que estava
destrancado, reprimindo-me emocionalmente, tentando assim, encontrar algum
motivo que mantivesse em mim uma porçãozinha de calma e equilíbrio. Meus
pensamentos cruzavam-se dentro da minha cabeça. Estava começando a sentir
dificuldades para respirar; sentia-me perder o controle e rapidamente ser
tomada pela fúria.
Só conseguia pensar em acabar de uma vez com aquilo que me consumia. Taciturna, levei
minha mão até a maçaneta da porta e empurrei-a com toda a minha força. Dali em
diante, fui irracionalmente guiada pela cegueira até onde estava minha mãe
abraçada com aquele avarento do inferno.
“Seus minutos estão contados!”, pensei, lançando-me entre os dois,
enfurecida. Sequer dei-lhes tempo para notarem minha presença.
— Que diabos está fazendo aqui? –
indagou minha mãe.
— Isso mesmo. O que faz aqui esse
ser de outro mundo? — vociferou meu padrasto.
— Vim fazer o que haveria de ter
feito há muito tempo! – retruquei.
Tomada pela raiva que me consumia
o cérebro e os pensares, fechei meu punho atingindo-o no nariz e em seguida a
boca do estômago, levando-o ao chão; e antes que ele tentasse qualquer gesto de
defesa, saquei de baixo de meu casaco o calibre que havia guardado todo o tempo
para um momento preciso como aquele.
— Prometi a mim mesma que você
pagaria por tudo que fez! – enquanto pressionava com força a arma contra sua
cabeça, mantinha-o imobilizado abaixo de meu joelho direito, que lentamente
tirava-o a oportunidade de continuar respirando.
— Por Deus, o que está fazendo?
Explique-me de uma vez o que está acontecendo! – replicou minha mãe,
completamente estatelada, mergulhada em seu próprio pranto.
— Poupar-me-ei das explicações,
mamãe. Não desperdiçarei sequer um segundo. Farei questão de que o ultimo tempo
de vida deste homem seja o pior de sua vida. – guinchei-o, coronhando-o com a
arma. – Por todas as vezes que prendeu-me em casa junto a cama... todas as
vezes que abusou de minha inocência! – repeti os mesmos golpes, cobrindo-o com
o próprio sangue. – Saia daqui de pressa! – ordenei que minha mãe deixasse o
local e quando finalmente ouvi a porta ser fechada atrás de mim, tornei a
observar com atenção a feição daquele por quem fui atormentada toda a minha
vida; e por dentro, nutria um sentimento de pura repugnância... ódio.
— Nunca teve coragem de nada. Foi
e sempre será a mesquinha incapaz de levantar uma agulha sozinha. O que dirá a
apertar um gatilho?
— Eu não tinha... mas veja agora:
eu cresci disposta a compensar todas as tolices infantis que já cometi. –
engatilhei o calibre, mirando-o certeiro no centro da rubra face que se
aquietara na minha frente. — E essa é pela dignidade que você me tirou quando
não pensou duas vezes antes de acabar com a minha vida.
E então eu pressionei o gatilho,
provocando o disparo.
Não só me senti finalmente
vingada, como arranquei de dentro do peito o compromisso que mantive comigo
mesma por todos esses anos. Fiz não o que era certo; talvez nem o que deveria
ser feito, e tendo plena consciência da conduta que me fora atribuída é que
consegui dormir em paz, num pagamento infindo por um crime: um crime que
valeu-me a pena ter cometido.





